A Tokenização de Quotas por meio de Fundos


A Tokenização de Quotas de Antecipação de Recebíveis por meio de Fundos de Investimentos de Direitos Creditórios (FIDC) à luz da regulamentação brasileira

Autor: Gabriel Lobato | Revisado por: Matheus Linck Bassani

Identifica-se atualmente no cenário brasileiro diversos instrumentos financeiros que viabilizam aos investidores diversificar seus investimentos. Será abordado nesse breve comentário o Fundo de Investimento em Direitos Creditórios – FIDCs que, com o advento da tokenização de ativos mediante tecnologia denominada de registro distribuído – Distributed Ledger Technology (DLT/Blockchain), tende a assumir um papel significativo no mercado de investimentos.

A regulamentação dos FIDCS, por tratarem de ativos mobiliários, possui sua competência regulatória atribuída à Comissão de Valores Mobiliários – CVM por meio da Resolução nº 175/22, a qual regula a constituição, o funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimento, e também, a prestação dos serviços de administração e gestão de tais fundos. 

Além disso, também define o conceito de direitos creditórios, como sendo os direitos, títulos e valores mobiliários representativos de crédito. São exemplos os créditos de antecipação de recebíveis, cédulas de crédito bancário, receitas provenientes de contrato de locação, dentre outros.

Por outra perspectiva, os tokens criptográficos registrados em DLT/Blockchain podem ser representações digitais de um ativo físico, e têm sido muito úteis no caso de cessão de direitos creditórios por meio da antecipação de recebíveis, principalmente para aquelas empresas que precisam aumentar a captação de recursos ou obter capital de giro de uma forma menos burocrática em relação ao instrumento financeiro tradicional.

Nesse sentido, quando uma empresa emite tokens de recebíveis, ela está, essencialmente, transformando seu crédito em uma obrigação futura de pagamento de forma digital, que pode ser adquirida por investidores. Como prêmio, são pagos os respectivos rendimentos quando do adimplemento das obrigações subjacentes. 

Isso permite que as empresas antecipem o recebimento de valores para melhorar o fluxo de caixa e financiar operações ou expansões; enquanto garante aos seus detentores rendimentos provenientes de transações comerciais futuras de um determinado negócio. 

Os referidos tokens podem ser emitidos por meio da tecnologia DLT/Blockchain, que é uma estrutura de dados descentralizada, segura e transparente. Assegura a integridade e a rastreabilidade das transações, além de trazer benefícios significativos como aumento de liquidez para as empresas e acesso a novos mercados. Ademais, essa abordagem também pode reduzir os custos associados ao processo tradicional de antecipação de recebíveis, tornando-o mais eficiente e acessível para todas as partes envolvidas.

O problema identificado é que a resolução normativa – Resolução nº 175/22- não aborda de forma específica a “tokenização de direitos creditórios” considerando a utilização da tecnologia DLT/Blockchain. Logo, para uma melhor compreensão acerca da conformidade regulatória desse “novo modelo de fundo”, é necessária uma análise interpretativa conjunta das normas regulamentares vigentes. 

Assim, serão abordados os principais critérios regulatórios a serem observados para a estruturação, emissão, distribuição e gerenciamento de tokens de antecipação de recebíveis, a fim de identificar os principais riscos envolvidos no seu processo de implementação e como este processo poderia ser facilitado caso a regulamentação aplicada desse uma especial atenção aos fatores tecnológicos da tokenização.

Apesar da relativa facilidade e praticidade do processo tecnológico na emissão de tokens, as empresas devem preencher uma série de requisitos regulatórios, visto que tal espécie de ativos digitais, na maioria dos casos, são considerados como valores mobiliários.

Assim, de acordo com o Parecer nº 40 da CVM, a caracterização de um ativo digital como valor mobiliário está ligado às suas características intrínsecas. Pode ser considerado como uma representação digital de algum dos valores mobiliários previstos em lei nos termos dos incisos I a VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76, ou ainda como um contrato de investimento coletivo. Nesse último, as premissas do “Teste de Howey” devem ser levadas em consideração para determinar se um determinado ativo é ou não valor mobiliário.

Em suma, os principais fatores levados em consideração para a caracterização como contrato de investimento coletivo, são os seguintes: i) a realização de um investimento; ii) formalizado por título ou contrato que resulta da relação investidor e ofertante, iii) caráter coletivo do investimento; iv) expectativa de benefício econômico; v) esforço de empreendedor ou de terceiro; vi) oferta pública.

Para melhor esclarecer o conceito sobre os “Tokens de Recebíveis (TR)”, ou, “Tokens de Renda Fixa”, a CVM emitiu os Ofícios Circulares nº 4 e nº 6 de 2023, os quais, apesar de não possuírem caráter normativo, visam dar publicidade às interpretações da Superintendência de Supervisão de Securitização – SSE acerca das possibilidades de enquadramento dos TR como valores mobiliários.

Esta publicidade visa divulgar para os principais agentes envolvidos, notadamente as “exchanges” ou “tokenizadoras”, mas também aos emissores, cedentes, consultores e estruturadores, o seu entendimento sobre a provável natureza de valor mobiliário dos TR cuja oferta pública pode ser equiparável à operação de securitização de que trata a Lei nº 14.430/2022 ou oferta de contrato de investimento coletivo (“CIC”) prevista no art. 2º, inciso IX, da Lei nº 6.385, de 1976.

Dessa forma, caso os tokens se caracterizem como valores mobiliários, as normas sobre registro de emissores e de ofertas públicas devem ser respeitadas, bem como as disposições sobre intermediação, escrituração, custódia, depósito centralizado, registro, compensação, liquidação e administração de mercado organizado para negociação de valores mobiliários.

Por outro lado, a SSE observa que as ofertas de TR de até R$15 milhões podem ser compatibilizadas com o modelo regulatório de Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários de securitização, previstos na Lei nº 14.430/22, de Crowdfunding, podendo ser emitidos por Companhias Securitizadoras de capital fechado, sem registro na CVM, e conduzidas por meio das plataformas registradas sob o regime da Resolução CVM nº 88/22, desde que cumpridos os mesmos requisitos previstos nas referidas Lei e Resolução.

Tal interpretação possibilita uma compatibilização da tecnologia dos tokens com aquelas utilizadas na infraestrutura das plataformas, considerando que o regime regulatório especial da Resolução CVM nº 88/22 dispensa, em certas situações, a contratação da infraestrutura tradicional do mercado de capitais. 

No entanto, tais normas regulatórias podem não ser suficientes para acompanhar o desenvolvimento tecnológico e as especificidades desse instrumento financeiro, quando se utiliza a tecnologia DLT/Blockchain.

No contexto da tokenização de recebíveis, os riscos que emergem devido à inovação tecnológica e à integração de ativos financeiros tradicionais com a blockchain são significativos e para uma adequada mitigação desses riscos, requer-se uma abordagem regulatória robusta e sensível. 

Destaca-se que é essencial estabelecer padrões claros para a identificação e classificação dos tokens, garantindo que sejam tratados de acordo com sua natureza específica, seja como valores mobiliários, ativos securitizados ou como instrumentos financeiros distintos.

Além disso, a regulamentação também deve focar na segurança cibernética, implementando diretrizes rigorosas para proteger os dados e ativos digitais, prevenindo assim ataques cibernéticos e garantindo a confiança dos investidores, estabelecer de forma clara práticas de transparência e a divulgação adequada das informações que também são fundamentais para mitigar o risco de informação assimétrica entre os participantes do mercado. 

Ainda, a regulamentação deve abordar questões relacionadas à governança e à conformidade, garantindo que as empresas que emitem tokens estejam em conformidade com as leis e regulamentações vigentes. Em última análise, a colaboração estreita entre os reguladores, as empresas e os especialistas do setor é crucial para criar um ambiente regulatório dinâmico e eficaz que possa acomodar a inovação, ao mesmo tempo em que protege os investidores e promove a integridade do mercado.

Por fim, a tokenização de quotas de antecipação de recebíveis por meio de Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios (FIDCs) no contexto da regulamentação brasileira é um campo promissor que integra inovação tecnológica e práticas financeiras tradicionais. Este estudo destaca a convergência entre a tecnologia blockchain, os FIDCs e os tokens de recebíveis, delineando os desafios e oportunidades associados a essa transformação.

A análise das normas e interpretações fornecidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) revela uma preocupação significativa com a conformidade regulatória e a proteção dos investidores ao emitir os Ofícios Circulares nº 4 e nº 6 de 2023, demonstra um esforço em fornecer orientações claras sobre a natureza dos Tokens de Recebíveis (TR) e suas implicações no contexto dos valores mobiliários. 

Tais esclarecimentos oferecem uma base para as empresas envolvidas, abordando questões fundamentais como oferta pública, enquadramento como valor mobiliário e possíveis limites de operações. No entanto, é notável a ausência de regulamentações específicas sobre a tokenização de direitos creditórios e a falta de orientações normativas detalhadas em relação à tecnologia blockchain. 

Esta lacuna cria um ambiente desafiador para as empresas, que precisam inovar dentro das estruturas regulatórias existentes, ao mesmo tempo em que mantêm a conformidade legal.

Apesar desses desafios, a introdução dos tokens de recebíveis oferece benefícios substanciais para as empresas, como maior liquidez, acesso a financiamentos e eficiência operacional. A capacidade de compatibilizar a tecnologia dos tokens com os regulamentos existentes, conforme indicado pelos Ofícios Circulares da CVM, abre uma janela de oportunidade para a inovação e a integração de novos participantes no mercado.

Portanto, à medida que as empresas exploram as possibilidades da tokenização de FIDCs, a colaboração contínua com as autoridades regulatórias e o entendimento profundo das nuances legais se tornam imperativos. Esse diálogo construtivo não apenas fomentará a inovação, mas também estabelecerá bases sólidas para a criação de um ecossistema financeiro digital seguro e eficaz no Brasil. O futuro da tokenização de FIDCs é, portanto, promissor, mas exige uma abordagem cuidadosa, colaborativa e estratégica para prosperar no cenário regulatório em constante evolução.

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1)  Advogado. LLM em Direito Empresarial pela FGV/RIO. Membro da Comissão Nacional de Ativos Digitais e Blockchain da Associação Brasileira de Advogados – ABA. Pesquisador associado ao ICOLAB.

2) Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Assessor Superior do TJRS. Coordenador da área do Direito do Icolab.

3) São exemplos de direitos creditórios: i) contratos de aluguel de máquinas, equipamentos e imóveis; ii) risco sacado, notas fiscais performadas enquanto cedente; iii) instrumentos financeiros como Cédulas de Crédito Bancário (CCB) e Cédulas de Crédito Imobiliário(CCI) iv) recebíveis de cartão de crédito e boleto bancário (Interpretação do autor com base na Res.175/2022 da CVM).

4) O teste de Howey é um critério legal utilizado nos Estados Unidos para determinar se uma transação é considerada um contrato de investimento coletivo. Ele se aplica quando pessoas investem dinheiro em um empreendimento com a expectativa de colher lucros futuros, e esses lucros são gerados principalmente pelos esforços de terceiros. Se os investidores não têm controle significativo sobre as atividades que geram esses lucros e dependem dos esforços alheios para obter retorno financeiro, então, de acordo com o teste de Howey, a transação é classificada como um contrato de investimento sujeito às leis de valores mobiliários dos EUA (Interpretação do autor com base no Parecer nº 40/2022 da CVM).

Referências:

Parecer nº 40/22 CVM 

Resolução nº 88/22 CVM 

Resolução 175/23 CVM 

Resolução 181/23 CVM 

Ofício Circular n. 4/2023/CVM/SSE 

Ofício Circular n. 6/2023/CVM/SSE 

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