Por: Daniela Pellin (Coordenadora de Pesquisa Jurídica do IcoLab)
André Andrade Gomes de Oliveira (pesquisador jurídico IcoLab)
Desde o advento da publicação do Livro Verde da Sociedade da Informação, em 2000, pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, a sociedade brasileira vem passando pelo processo de reengenharia social, ou melhor, pelo processo de estruturação da fusão entre o físico e o digital de tal forma que seja implementada a Smart Society 5.0, compreendida como a sociedade global.
Essa base documental é importante porque, de lá para cá, a agenda do Livro Verde Global vem se cumprindo e podemos contemplar todas as transformações que, com todo respeito a posicionamento de evolução humana natural, cuida de projeto de engenharia social global, tendo o Brasil assentido quando se acoplou ao sistema global publicando seu Livro Verde. Dessa constatação, decorrem todos os fenômenos que estamos vivenciando em âmbito de desenvolvimento, uso e aplicação de tecnologias, isoladas ou convergentes, as quais têm o objetivo final de sustentar a singularidade.
Mas, em se tratando de analisar algum desses fenômenos sob a lente jurídica, a nossa escolha de hoje, recai sobre a Blockchain aplicado nos contratos inteligentes.
O que teria a Blockchain de jurídico? Qual serventia teria o Direito para a Blockchain? Teria pontos de contato entre a Blockchain e o nosso Direito, tal como o concebemos, ainda, atualmente? Até onde o Direito pode chegar para acompanhar a evolução capitaneada pela Blockchain?
Veja. Primeiramente, na minha perspectiva, a Blockchain é uma forma colaborativa, segura e confiável de realizar o próprio Direito. Isso implica dizer que a tecnologia Blockchain é uma ferramenta tecnológica com natureza jurídica porque possibilita que direitos e obrigações sejam reconhecidos pelo algoritmo como autoexecutáveis, o que permite a gestão do contrato pela tecnologia em ganho de eficiência ao impedir impasses durante a relação jurídica e ao abrir espaço para a incidência de rigor no cumprimento das obrigações assumidas.
Segundo aspecto importante, reside no efeito jurídico que há no Livro Digital da Blockchain ao controlar a cadeia de execução contratual. Como ficam registrados os dados jurídicos no Livro Razão de forma transparente aos envolvidos na rede, a tecnologia atende, melhor do que nós, aos princípios contratuais de boa-fé, função social e bem comum, na medida em que, não favorece ao ambiente de impasses e renegociações sem que todos tenham ciência do ocorrido, atuando como limitador de condutas indesejáveis que possam macular a confiança, a imagem e a reputação a aumentar o custo de transação em futuras outras contratações.
Disso resulta que o ponto de contato entre Direito e Blockchain reside na complementariedade; no alinhamento; no aprimoramento do funcionamento do sistema jurídico; na possibilidade de autorrealização da autonomia da vontade na expressão pura da responsabilidade contratual com o dever de conduta antes, durante e depois da constituição contratual. Só os players com políticas de conduta consolidadas e, em condições financeiras e econômicas para suportar regras contratuais, são os indicados à Blockchain. Além de ser uma possibilidade jurídica é também uma possibilidade de governança. Uma governança não só na estrutura, mas, no funcionamento. O uso da Blockchain pode resultar em aumento de custo contratual aos participantes da rede e impactar no custo de transação de uso da tecnologia.
Nesse ponto, portanto, observo o Direito enquanto resultado dos fenômenos sociais que precisam de coordenação social a partir de regras que façam sentido e a Blockchain com a capacidade contributiva de executar esse sistema jurídico que reclama eficiência e satisfação: considero, portanto, a Blockchain como solução jurídica.
Mas, pisemos no chão do nosso desenvolvimento e consideremos que essa correlação surge em um cenário vanguardista, em que o setor conservador do Direito se depara com a necessidade de flexibilizar estruturas consolidadas de territorialidade, governança e centralismo e repensar estratégias de como atender às incertezas, a exemplo da dificuldade em determinar os direcionamentos necessários de execução e penhora; a heterogeneidade das regulamentações da tecnologia, uma vez que a sua disrupção impossibilita a centralidade estatal e, ao mesmo tempo, não pode distanciar-se dos princípios caros do ordenamento jurídico.
Essas incertezas e riscos, com o tempo, deverão ser enfrentados. A questão é se essas respostas virão com uma adaptação da Blockchain ao direito ou se este encarará a dura realidade de não ter o controle sobre todas as evoluções tecnológicas; ao invés de implicar com o desenvolvimento, se acople na estrutura como se propôs mais acima. Assim, ainda não é possível responder, ao menos no presente momento, quem fará uso e quem se manterá com o bom uso da tecnologia a médio e longo prazos, uma vez que se pretende com ela, estabelecer padrões rígidos de governança e conduta humana em rede descentralizada e auto controlável.
Sejam bem-vindos à Smart Society 5.0!